sexta-feira, 6 de julho de 2007

Mário de Sá-Carneiro

VII - Dispersão

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto 
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.
 
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
 
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
 
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
 
Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
 
O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.
 
A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
 
Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo.
 
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.
 
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
 
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
 
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo
 
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
 
(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que sonhei!... )
 
E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
 
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
 
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
 
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
 
Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
 
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
 
Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal.
 
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...
 
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
 
  
Paris - maio de 1913.

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