segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Cinismo - Rubem Fonseca

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Mas afinal, qual a filosofia dos cínicos? Os antigos, da época de Antístenes, pregavam o desapego aos bens materiais e externos, a rejeição à hipocrisia, e estabeleciam uma correlação entre conhecimento e virtude, virtude que consiste, sobretudo, na conduta moral do ser humano, naquilo que lhe é intrínseco – e não nas conquistas materiais. Exatamente o oposto do significado da palavra em nossos dias.

E os filósofos cínicos modernos? Peter Sloterdijk, autor do cultuado Crítica da razão cínica, foi há alguns anos o pivô de uma briga que dividiu a intelectualidade européia. Sloterdijk propôs um Conselho de cientistas e filósofos para criar um discutível “Parque Genético Humano” – “Menschenpark”, para salvar a espécie da imbecilidade e brutalização induzida pelas mídias. O famoso filósofo alemão Jürgen Habermas atacou Sloterdijk e um monte de filósofos se meteu no meio, confundindo mais do que esclarecendo.

Onde se encontram os cínicos autenticamente seguidores de Diógenes?, pergunta o filósofo Michel Onfray, onde se aninham os descendentes do filósofo do cão? Primeiramente entre os filhos de Nietzsche, que, como sabemos, morreu louco. E os outros, quem são eles? Entre os mais recentes Michel Foucault e Gilles Deleuze, “que morderam feito cães, cagaram e mijaram nas falsas aparências da época, levantaram as patas diante das honrarias e dos poderes.”

Mas eles, os cínicos autênticos, existem entre as pessoas simples, “pode ser qualquer um que se sinta revoltado e animado por uma vontade política de acabar com os cínicos vulgares, aqueles que querem vender um amanhã ideal para fazer engolir o hoje insuportável. Sua insubordinação, sua rebelião, sua revolta, sua reinvindicação reatualizam o gesto de Diógenes.”

Todavia, os cínicos autênticos, em sua maioria, não sabem que são cínicos. Eles desafiam as falsas convenções sociais e a moralidade hipócrita, mas não sabem que isto é um cinismo genuíno. Lamentavelmente, a palavra cinismo, para eles, sofreu a diacronia semântica e passou a ter um significado pejorativo.

Esta conversa está ficando muito filosófica, e chata. Vamos voltar à diacronia da semântica.

Um instrumento de tortura denominado “tripalium” com o passar dos anos tornou-se a palavra “trabalho”. (Sei que para muitos “trabalho” continua sendo uma forma de tortura.) Todos aqueles que têm computador conhecem a palavra inglesa “delete”, que significa apagar. É uma demonstração de como as palavras se movimentam no tempo e no espaço. O verbo delete vem do latim delere (apagar). Agora, no século 21, a palavra, migrando do inglês, reaparece em português no seu sentido original, deletar, devidamente integrada ao nosso vernáculo. A palavra estilo, do latim stilum, designava originalmente uma pequena haste usada para escrever, um tipo de caneta antiga. Não demorou para que surgisse um novo sentido para a palavra, ou seja, a “maneira de escrever” — “o estilo literário dos escritores”, como também o conjunto de tendências e formas de comportamento, além de significar requinte, habilidade esportiva, etc. A palavra avião, do francês “avion”, significava ave grande; quando foi inventado um aparelho com asas que voava, qual o nome que lhe foi dado? Avião. A palavra “tela” indicava (e ainda indica) um tipo de tecido; quando o cinema foi inventado, as imagens eram projetadas num retângulo deste tecido. Surgiu então a palavra tela ligada à imagem com o seu sentido puramente cinematográfico. A metáfora também influência as mudanças das palavras. Para não ter que usar palavras vulgares a fim de denominar órgãos genitais e excretores, (por exemplo, em português, boceta e cu), passou-se a usar vagina e ânus, oriundas das palavras latinas “vagina” e “anulus”, que significavam respectivamente vagenzinha e anelzinho.

Porém, a nossa discussão sobre a mudança de significados das palavras tem que passar pela semântica, pela metonímia e pela metáfora. Eu costumo dizer que a superioridade da literatura sobre todas as artes resulta da sua polissemia mais rica, isto é, a sua capacidade de ter muitos significados. O leitor, à medida que lê, recria a história, usa a sua imaginação. Isso é impossível olhando para a “tela”.

Mas vou deixar este assunto para outra ocasião.

Voltando ao cinismo. Você é um cínico autêntico, seguidor, ainda que inconsciente, do Diógenes, ou é um cínico que faz parte da outra categoria?